30 de set. de 2010

576M/10 Vila Clara

O silêncio não existe.
Eu pensava enquanto escovava meus dentes pela manhã.

— As mulheres só usam chapinha no salão.
Dizia o motorista enquanto dirigia o ônibus pelo caminho.
— Todas têm chapinha em casa agora.
Corrigia o cobrador, enquanto atravessava o corredor.

O silêncio realmente não existe.
Reiterei baixinho pra mim mesma, enquanto me concentrava na paisagem do Clube Pinheiros. Todos os dias, os mesmos muros altos orientando a calçada. É bonito de fazer chorar.

Precisa-se de garçonete. Lanchonete do Clube Pinheiros.
Então foi assim o restante do percurso: pensando em servir lanches e refrigerantes para velhinhas e crianças.

Coisa mais feliz que existe é levar comida pra criança que brincou a tarde inteira e nem consegue falar nada com nada e nem presta atenção na comida, olhando pra mãe e falando que nadô sozinho até o fundo e depois qué i no Parquinho. Vai, mãe, pô favor, (Mastiga primeiro, menino) só 15 minutinhos.

Mas a dor não existe.
As lágrimas secaram.
Passado e futuro são o presente.

Deitada na esteira, nenhum ruído pela rua ou pela sala. Só o zumbido contínuo do nada. O som da vida.

Eu gosto muito das árvores da Rebouças. Gosto da República do Líbano: a sonoridade do nome, as árvores do Ibirapuera, o trajeto contínuo, a pequena entrada na Canário para Moema. ibirápûéra.

Meu passado é meu presente, não separo mais o que era do que será.
Meu amor segue inabalado. Sem paredes, sem distâncias, sem precisar de palavras pra se expressar.

Deito no chão, braços estirados, céu azul que eu inventei.
Meu amor é maior que o nosso silêncio.

— Maior até do que cabe daqui até o terminal Pirituba, corrige o cobrador, que hoje não estava a fim de trabalhar.

13 de set. de 2010

Voa

— Ela virou passarinho.
Foi o que a mãe disse, pouco antes da morte da tia. Ela quase não comia, não falava, só sorria. Uma coisa tão linda. Não foi nunca ao hospital, morreu em casa dormindo.

Eu também queria virar passarinho antes de morrer. Era um desejo de uma vida inteira.

Mas naquele dia, eu nem cheguei a pensar nisso. Queria mesmo, pelo menos, era lembrar da tia. A mãe dizia que quando nasci ela ficou bastante tempo comigo, embalava minhas tardes enquanto a mãe estudava.

Mas eu não consegui me lembrar dela. Nem do seu rostinho sorridente ou de sua presença silenciosa pelos natais.

A mãe se ofendeu. Disse que era uma falta de consideração eu dizer isso. Disse que não tinha respeito pelos mortos, disse que eu tinha que rezar pela tia.

Naquela noite eu ajoelhei na cama. E pedi, com as mãos unidas na frente do rosto e de olhos fechados, que sonhasse com a tia. E no sonho, ela se lembrasse de mim e eu pudesse me lembrar dela. Como acontece com a vó que já tinha morrido.

Mas eu não consegui sonhar com ela. E, no dia seguinte, fiquei bem quieta enquanto tomava café pra mãe não desconfiar. Lavei minha louça, coloquei minha roupa de tristeza, os sapatos velhos e fui seguir a procissão no cemitério com os primos que lembravam da tia.

Ninguém chorava alto, só a vó que tava viva. Mas eu acho (e também nem falei pra ninguém) que a vó chorava mesmo era por causa do vô, que ainda não tinha voltado.

A mãe chorava também, mas a mãe chora por qualquer coisa. Ela acha a vida coisa bonita demais, por isso ela chora. Foi o que ela me disse quando vi ela com olhos encharcados na janela.

Eu não tinha marido pra voltar e também não lembrava não de tanta felicidade assim. Olhei a tia durinha no caixão, branquinha, com o nariz pequeno e, então, fiquei esperando um passarinho vir pousar na testa dela dando beijo. Isso não me fez chorar, nem me fez lembrar da tia, mas eu fiquei bem quietinha, segurando a mão da mãe e da vó, que se lembravam de coisas demais.

2 de set. de 2010

Snow Globe

A bailarina tinha pés finos e dedos compridos. Ela vestia-se de rosa e carmim.
Tinha meia-calça e saias de tule. Os cabelos presos por tranças.
Ela colecionava papéis de carta.

Bailarina cantava.
Bailarina comia com as pontas dos dedos.
Bailarina dançava em círculos.

Ela tinha olhos doces e um pompom no bumbum
A bailarina girava.

O dia dormiu. A bailarina, que sonhava existir, sorriu.

Os cabelos sedosos contornavam a cintura de moça. A meia já não servia mais / A boca molhada. Os pés marcados. As unhas cravadas. A pele ensanguentada. Ninguém vai notar.

A chuva de neve contornava seu corpo.

A bailarina girava. Bailarina chorava.

O sorriso permanecia. As mãos na cintura.

A bailarina girava. Bailarina dançava.

Os seios fora da camisa. As mãos permaneciam.

Na ponta dos pés. Na ponta dos pés.

Bailarina chorava. Bailarina dançava. Bailarina em silêncio.

Cabelos na cintura. Mãos seguras. Pezinhos fincados.

A bailarina chorava.

Eu me aproximei do vidro. Minha respiração. A bailarina que queria existir. Meu peito eu queria te dar. Minhas mãos emprestar, o suor enxugar.

Bailarina não chore. Bailarina-boneca. Bailarina sorria.

****

Eu levanto sua casinha e agito com toda minha força.

— Dance, dance, dance, sua putinha.

Eu sorrio. Você não pode existir.