23 de mai. de 2014

Cosmogonia

Eu não tinha feito nenhum acordo com o diabo, mas tinha acertado comigo mesma que não ia envelhecer. Não ficar feito essa gente que anda por aí dançando sem saber se entregar, amando sem querer se doar.

Eu seria jovem,  decidi do alto dos meus 10 anos.

Comecei pela parte debaixo da árvore no sítio da minha avó, e percorri o quintal seguindo toda a extensão da cerca de aramo farpado. Na mão um pilão cheio de alho e sal, que eu tinha roubado na cozinha.

O cachorro, que era cego de um olho e coxo, me seguia capenguento.

-       Sai daqui Pluto, sai daqui.

Eu tinha medo desse fedido, que me diziam, tinha muito problema na orelha. Era mansinho, mansinho, mas tinha esses modos inusitados. Bastava passar a mão num pelo errado no ouvido esquerdo, para ele avançar mesmo contra crianças. O que justificou o fato de eu ter passado boa parte da minha infância, com medo das inconstâncias de um cachorro, que mancava da pata traseira.

Percorrendo a cerca com meu pilão, comendo o alho e sal amassado, me escondendo de um cachorro fugitivo de guerra.

(Eu criava na minha cabeça a imagem dele correndo pelos campos de batalha, com lencinho cáqui no pescoço, carregando uma espingarda nas costas. Seguindo a mesma lógica, ele tinha chegado no sítio da minha avó, em Alvares Florence, vindo de carona em carrocerias de camionetes marrons.)

Meu avô, que sempre foi mais pragmático, disse que ele foi chegando, se acostumando e fincou moradia, sem perguntar nada a ninguém. Como um velho solteirão cansado da vida, ele chegou hermético num fim de tarde, quando até as galinhas já tinham dormido, e eu contava asneiras aos pés da minha Tia Nastácia.

O Pluto encostou na varanda de piso vermelhão, entre a samambaia e a espada de São Jorge, atrás da cadeira de corda de plástico e ali ficou. Até esse dia-agora, quando ele me perseguia lentamente pelo quintal com suas três patas boas, seu ouvido com problemas e seu olho cego.

Eu não entendia os cachorros.

Todavia, de certa maneira, minha inabilidade para entendê-los era compressível. Até a chegada do Pluto, eu não conhecia nem um outro cachorro além do Pitoco: 

O Pitoco, um cachorrinho,
Muito esperto e muito ativo,
que morava nas histórias
do meu velho Tio Edinho.

O Pitoco,
que infeliz,
morria era picado de cobra
numa estrada bem longe dali.

Eu tinha medo de cobra, mas tinha mais medo ainda dessas coisas que eu não entendia. Como o Pluto, cachorro-velho-ermitão, fugido da guerra podia estar ali morrendo à olhos nus? Entregando seus últimos dias a perseguir uma menina de 10 anos com pilão de alho na mão? Como Pitoco, esse tontinho, podia morrer de picada de cobra tão longe dali e, pelo visto, nem tinha morrido pelo velho Tio Edinho?

Eu tinha 10 anos, mas não queria isso não, não queria ter fim igual a um cachorro de roça. Por isso, aos 10 anos, decidi não queria ficar velho não: não ter que escolher um lado da briga, não ter que lutar pela minha vida ou ter que lamber minhas próprias feridas.

Nunca mais comi alho no pilão, o sítio virou sombra-embolorada-passada, eu não sei mais por onde anda meu Tio Edinho.

O Pluto morreu escondido. Ele nunca me alcançou naquela cerca, cujos limites de arame farpado até hoje eu desconheço.

16 de mai. de 2014

Da série: cartas que nunca serão enviadas

Essa calça tá muito quente.
Bom. short de dormir.
Prender o cabelo? Porra, cabelo curto. Só se eu tomasse banho.
Mas quero falar, quero falar com você.
Sei, sei bem. Falo sobre você.

No bar.
Na Bela Cintra.
Falei mal de você. Como falo sempre. Me sinto bem melhor.
Mas aí minha amiga tava cansada, meu amigo ia pra outro bar.
E aquele papo todo sobre....você vai rir, nem vou te contar.
Você ia ficar puto.

Mas é que sonhei com você essa noite. Sonhei que alguém tentava suicídio, primeiro, no sonho, achei que era você. Mas não, não era. E fiquei desesperada.
Quase te liguei, mandei uma mensagem. Porque no meu sonho, tinha essa amiga minha que você não conhece. E ela não conseguia ver sua imagem refletida no espelho.
E eu fiquei assustada porque tinha havia um precipício, eu não queria um precipício, queria uma estrada segura, mas eu descia o precipício sem saber porque o fazia.

Acordei e pensei em te ligar. Escrevi uma mensagem sincera e apaixonada,
Mas não mandei. Pensei em mandar hoje de manhã, mas analisei bem, valia a pena? Conjecturando : não.
Porra, mas fiquei pensando nisso. Aí li meu horóscopo que é igual ao seu. Para me lembrar na sequência: não acredito em horóscopos em 2009.

Aí pensei em ganhar o dobro que ganho hoje. E isso seria perfeito, porque se eu tiver muito dinheiro não penso em você. E pensei o quanto seria feliz.

Mas eu queria fazer algo, porque estava sozinha naquele bar. Sozinha sem vontade. Pensando no poodle branco preso na coleira à mesa do outro lado da rua com seu dono velho e gordo.
Pensei na minha amiga que havia me convidado para ir ao Ibirapuera correr.
Ai, esqueci a roupa de ginastica. Ai.

Olhei minha bolsa, talvez você tivesse ligado, mas eu não ouviria. Porque não me importo! É, foda-se. Aí veio toda aquela conversa. Você não ia se importar, então nem vou te falar porque te respeito. 

Mas seu signo é igual ao meu.
O que eu senti, você sentiu?
Diz que sim, não conto pra ninguém.

Mas minha amiga tava mal e eu sei o que é sentir isso, então comprei uma coca e um chocolate vermelho.

Bode.
Ovelha.
Churrasco e cuca.
É, vou pro Sul viajar. Você gostaria de saber? Pareceria sofisticado?
Todos os meus planos pra te impressionar.
E almoços sozinha.
Olhando paredes e ventiladores.
Olhando pessoas e suas mentiras. Maiores que as minhas.

Preciso tomar um banho, lavar esse cabelo. Organizar tudo e te ligar antes que.
Não tenho nem o que te dizer. Mal controlo meus sonhos e eles não me dizem coisas boas. Quando eu estava com você meus sonhos era bons, mas sem você não consigo ver minha imagem refletida no espelho do banheiro, tem alguém se enforcando. Um homem.

Sei que minha vida é melhor sem você, caralho.
Você não me fazia bem, meu inconsciente deveria entender.
Porra.

Tudo bem, sem palavrões. Sei bem o que você gosta, e eu gosta de ser o que você gosta. Porque sou índio.
É preciso discordar em algum momento, falar de índios e alemães e qualquer coisa só pra te mostrar: não faço as coisas só pra te agradar.
Eu só não me importo.

Mas sentei aqui, com calor, com sono pra conversar com você.
Mesmo porque, eu vou falar isso bem devagar, com muita calma, pra você prestar atenção, vou contra tudo que você é, pra te convencer mais uma vez, não vai dar certo, porque insistir?

Porque continuo aqui ouvindo música francesa e falando de coisas que não te fazem nenhum sentido? Pra te convencer pelo avesso que não sirvo pra você?  
Retórica sofística, entende?


8 de mai. de 2014

Saravá

De autor desconhecido

Então acontece uma dessas coisas que só são possíveis quando você mora numa cidade de praia: você não vai à praia.
Digo, você não vê o mar, não se impressiona com a beleza, o ar puro, e todos aqueles clichês que envolvem o sonho padrão de um paulistano medíocre: morar na praia.

Digo: você não.
Eu.
Muito prazer, paulistana medíocre, ao seu dispor.

Digo, eu que não nasci em São Paulo e faço parte de mais um clichê que envolve a cidade: 18 anos, classe média, que vem à capital cursar faculdade.
Sim. Morei numa kit, frequentei a Augusta, trabalhei desde o primeiro ano da faculdade e, claro, bebia na Paulista com caras com ternos mal cortados que trabalhavam em banco. Graças a Deus não fiz cursinho na Liberdade. Dessa me livrei por pouco.

Soa um pouco pessimista, né?
Mas tudo isso me conduziu até onde estou hoje. Vagando pela Europa sem dinheiro, sem moradia, bebendo uísques vagabundos, fodendo com estrangeiros em hostels que cheiram a naftalina.
Escrevo agora de Londres, com uma garrafa de gim em uma lan house de um vietnamita.

Uau.
Que fucking Bukowski eu daria: escritora, bêbada, fumante, sem dinheiro e, absolutamente, genial.
E aí teríamos um clichê que valesse a pena na minha vida.

Nada mais longe da minha realidade. 

Mas afinal, quem se importa com a minha vida? Beijo, mãe.

Afinal, falar de si mesmo na prosa é como fazer poesia sobre paixão. Rosas, estrelas, meu leito, penso em ti.
Caralho, penso em ti?
É quase como comemorar aniversário de namoro no motel, com lençol de seda dourado e champanhe barato no balde com gelo.
....
(Quem-nunca?)
...

"Saio da vida para entrar na história".

E agora tem até frase pulando dentro da minha história.
É. Porque decidi: este vai ser um texto surrealista.
Sou Mademoiselle Duchamp, baby. Este texto agora é minha privada, que eu vou pendurar na parede da sua sala. E você vai achar incrível, porque você me ama e ninguém mais entende minha arte, o que fará de mim, aos seus olhos, a coisa mais exclusiva, sexy e talentosa que você já comeu.

Oi, você ainda tá aí?

Sinto muito, isso tá errado. Eu queria falar de praia, eu queria fazer uma poesia sobre o mar. 
Eu queria fazer uma coisa sexual, mas lírica ao mesmo tempo. Castro Alves meets Nelson Rodrigues (ai, não ando nada modesta).

Sabe, já tava tudo na minha cabeça desde ontem à tarde, quando me obriguei a parar na praia para olhar o mar.
Isso, sentar e olhar o mar, respirar-e-mar, sentir saudades-e-mar.
Pensei que na minha poesia, a espuma era sua porra. E a gente podia/

Mentira, a coisa da espuma-porra pensei agora.
E se pudesse apagaria, porque relendo me soa de extremo mal gosto. 

Claro, claro, baby. Poderia apagar...não sou nenhuma retardada que não sabe desfazer as merdas que faz.

Digo, será possível, de alguma maneira, apagar as coisas que fizemos na vida? Existe um backspace pra isso?

É muito fácil se esconder atrás de uma poesia, de joguinhos de palavras, segura pela gramática, parágrafos-pontos-vírgulas-tremas (eu uso tremas às vezes, soa tão sofisticado). Argumentos são lidos e relidos antes de se publicar. Racionalizando amores, rimas, oferecendo a um leitor imaginário a ilusão que você tinha absoluto controle do que dizia.

Escrever é para os covardes, baby.
Dizer que te amo exige muito mais do que uma página em branco.

Sobre a autora:

Faz ensaio sensual, já tem nome artístico de ninfeta ninfomaníaca.
Um dia chega lá: rainha da bateria, peitinho de fora, close de rosto inteiro no Jornal Nacional. Tá se guardando pra quando o carnaval chegar.
Na capa da Playboy, nome e sobrenome de família, ela promete. Sua hora da estrela.


2 de mai. de 2014

O amor é velho, menina

Foi pensando no Tom Zé que eu entrei naquele ônibus. Alguns quilômetros ao Norte de Lisboa, eu deixava a rodoviária fantasma da pequena cidadela à bord de mer. O vento gelado do Atlântico assoviava a primavera que começava. O terreno plano e verdejante me lembrava vagamente Recife ou Fortaleza: a estrada margeada por dunas de areia clara, o céu de nuvens apagadas.

Eu tinha as mãos frias, uns poucos vestidos na mala e só um casaco. Minhas roupas me apertavam: anéis, meias, presilhas de cabelo. Tudo que eu queria era poder chegar em casa: ahhhh, a minha grande casa imaginária. 

Eu já sabia como ela seria: às vezes na beira de um rio, cheio de largos peixes que eu não comeria.  Com uma grande varanda, janelas azuis no interior de Minas ou Petrópolis (meus amores platônicos sem fim) . Teria uma cerca baixa, uma varanda com cadeiras, uma roseira e um pé de morango, que daria pequenos, pequenos moranguinhos a cada dois anos. Que eu comeria lambendo beiços e dedos.

Dei a passagem para a senhora entrar no ônibus antes de mim. A miúda senhora de 70 anos, com saia marrom de bainha feita, colar de pérolas, duas malas de couro e um guarda-chuva azul. A musa da história que eu escreveria: a Mary Poppins lusitana. (Compreendam, eu ainda estava inflamada pelos versos do “Canto 1” dos “Lusíadas”, que eu havia descoberto cravados numa fonte de um jardim chamado Macau, em Lisboa.)

“Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram.

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.”

(É de brilhar os olhos a megalomania portuguesa.)

Minha musa lusitana mal falava português, conversávamos em francês embolado. Sua vida em Paris no bairro ao lado de algum monumento importante.
- “Sabes onde ficas, senhorita?” E eu respondia sim à todas as suas perguntas com medo de desapontá-la.

Era viúva ha 22 anos, morava com o filho de 50 anos. Voltava à Portugal de tempos em tempos, havia mantido uma casa, um casal de tios e desusadas memórias. Sua vida balançava na ponte aérea que separava os dois países. Nunca poderemos pertencer a um só lugar, afinal.

O senhor que a acompanhava era o tio. Estacionava o carro perto da entrada da rodoviária. Uma grande barriga de bola-do-Kiko, olhos molhados, uma boina cinza clara, ouvidos ruins. Ele tem 90 anos.

Mora com a esposa, também 90 anos. Uma das filhas mora em Lisboa, a outra em New York. E foi New York que ele pronunciou. Admiti que ela morasse em New Jersey e tivesse filhos, uma grande TV e dois labradores num quintal de subúrbio. (Eu costumo ter muito tempo para elucubrações.)

O senhor tem 90 anos, eu pensava aflita.

Ele reclama da crise, a fome não chegou na sua rua, mas ele afirma saber que a vida não anda fácil. Eu pergunto se ele gosta de sardinhas assadas. Sua sobrinha Poppins de 70 anos se aproxima de seu ouvido e repete de supetão: “Queres saber se gostas de sardinha”.
- És surdo como um vaso, ela diz ajeitando a alça das malas.

Quando ele era jovem tinha o hábito de percorrer os rios de Portugal, viajar pelo interior, hoje fica só dando voltas em círculos dos mesmos bairros conhecidos.

Sua filha nos Estados Unidos, a sobrinha na França. Me pergunto porque saíram de casa. Porque a filha deixou esse paizinho de boina e barriga-de-Kiko? Porque ela não voltou nem quando ele se aposentou, aos 84 anos, do comércio de modas que tocava. Porque foi se aventurar nessas amargas terras americanas, onde não o vento não chega gelado cheirando a sardinha grelhada. Porque abandonamos as casas imaginárias de nossa infância em busca de sonhos tão vagos quanto fronteiras entre territórios e  distância entre países?  Bebo um gole da água irrisória que carrego nas mãos.

Dou passagem para a senhora entrar no ônibus antes de mim. Ela sobe sozinha o primeiro degrau do autocarro. O tio a chama de volta:
Vem aqui, minha menina.  E pega suas duas mãos para desejar boa viagem.


Eu seguro minhas malas contra o peito e subo os degraus atrás dela. Os caminhos da vida são todos de brinquedo.

18 de abr. de 2014

Meu caro amigo

Desculpe, eu sei, lhe devo tantas visitas. Não sei nem mesmo mais. Você me receberia? Mas escrevo, escrevo poemas por covardia, medo de encarar essa vida sozinha. Sem a literatura, o que me sobraria?

Talvez fosse eu nessa cama, ao invés de você, talvez fossem as minhas cortinas que estivessem fechadas e eu, como um cachorro, estivesse de olhos fechados, fingindo dormir, correndo atrás de meu próprio rabo.

Mas vejo só você, e nos seus olhos, é refletida a minha dor. A dor de todo esse mundo,mas que você anda achando que é só sua. Aí nesse quarto, lambendo suas feridas, remoendo seus erros, apontando os culpados, intelectualizando cada suspiro. Com medo de amar.

Porra, medo de amar.

Amigo, meu caro, você não sabe nada sobre a vida. Você sinceramente acredita poder controlar a vida? Os outros? Você que andas as tantas aí, espiritualizado, não seja mais um desses canalhas ingênuos, falando em Deus, buscando a paz na montanha, o ermitão platônico, a serenidade utópica do não-conflito, deitado nesse quarto escuro, em eterna disputa consigo mesmo.

Eu descobri o segredo da vida. Todos os seus segredos, sua alma nua, todas as máscaras que dividimos.

Claro, ando como sempre muito mística, mas quais são os seus medos, inseguranças, traumas?
Não responda, não importa, desde que você se lembre que eu também tenho medos, inseguranças e traumas, que me motivam a fazer mil coisas, atacar ou me defender. Assim como você.

Quem é o culpado? O que tem a maior dor? E quem será o juíz? O meu Deus ou o seu?

Você está se vitimiza agora, bate os pezinhos no chão, não pode ser: você precisa de alguém para culpar pela sua miséria emocional (isto é, se você for corajoso bastante para admiti-la).

Mas eu te digo, não há a quem culpar, nem a si mesmo. Pois todos nós fazemos o melhor que podemos com o que temos no momento. Esse é o seu mantra. A vida só é perfeita se vista pelo mistério, pelo encanto, desencanto, pela morte de cada dia. Além disso, ela não vale coisa alguma. Nem uma mísera moeda do teu dinheiro suado, nem um mísero ponto de vista seu: seja sobre política, futebol ou sobre o novo carro do seu
vizinho.

E o pior, quer saber, os coqueirinhos na Bahia continuam balançando com o vento malemolente do Atlântico, apesar do seu medo idiota de amar.

Quer se matar? Vá, levante-se como homem e num gesto enfim coerente tenha a coragem de sair da vida, covardemente fugindo para a morte. A vida não é pra qualquer um. Talvez ela não seja mesmo para você, aí deitado na sua cama, se perguntando sobre a suas limitações, que nunca fizeram nem farão diferença nenhuma.

Eu já estive nessa cama. Eu já achei que Deus morava no alto daquela montanha, que o inferno são os outros, que o fato do outro não me amar fosse a causa do meu sofrimento.

Mas entendi o segredo de tudo quando me descobri parte desse mistério. Um dia sol, outro chuva, dia e noite, yin e yang, vida e morte. Ciclos que fazem parte de um todo, uma pequena engrenagem da roda da máquina mágica que não conhecemos.

Talvez eu morra amanhã, talvez seja você. Enquanto isso, estrebucho meu céu e inferno nessas porcas linhas imaginárias, para poder ter força para seguir adiante.

Vem me dê a mão. Eu acendo seu cigarro, a gente faz amor. Coragem.

11 de abr. de 2014

A menida de mil fitas


Apoiou os cotovelos na mesa, afundou o rosto entre as mãos. Os cabelos, se estivessem soltos, cairiam entre os dedos e sobre papéis em leque em frente ao computador.
Uma memória choque de tomada a fez recompor-se num salto. Olhando pateticamente para a tela do note.  Desligou-o como robô.


As ideias dançavam. Tinha olhos para alma, ela poderia gabar-se, isto é, se pudesse desperdiçar seu tempo com divagações, sobretudo à respeito de sua elegância. Claro, ela tinha amor próprio e.

Foi interrompida pelo rapaz de olhos de formiga e testa amarela com algumas planilhas na mão. Planilhas de excel, documentos Word, e-mails impressos e uma porção de números chatos, muito chatos entre aquelas letras datilogradas. Ria em silêncio de si mesma. Se a ouvissem falando em datilografia. E-mails são di-gi-ta-dos, pensava maquinalmente.

O rapaz repetia seu mantra fragmentado, que ela já havia decorado:

"Urgente.-números não batem-funcionários-caixa-urgente.-gerente de banco-hora da saida."

A estrutura era sempre a mesma, bastava preencher com o dia da semana, mês, nome do gerente novo/funcionário demitido. Era quase musical.

Ela vivia absorta em idéias vazias e alheias, num fluxo lento e ilógico.

Saiu da sala a passos de bailarina. Entrou no carro, girou a chave. Girou de novo. Tantos anos com um carro a álcool, conhecia certas de suas vaidades. Olhou no espelho o rosto invisível, o batom borra de café.

Dirigia vidrada e com uma tristeza inerente às mulheres, aquela que Vinícius de Moraes havia declamado. Mas nem sabia mais se não se lembrava da música ou se era justamente uma canção que ela não gostava. Vinícius, seu velho machista.

Apertou com força o freio. Sinal vermelho. Lembrou bem a tempo de passar na padaria.
Estacionou e desceu do carro ofegante. Se curvou em arco-íris para pegar a  bolsa de toneladas no assoalho.

pães, filtro para café, presunto, queijo prato.

Olhando as vitrines-fios-de-ovos quis uma tortinha de morango. Jogou moedinhas em cima do balcão e pediu ajuda à moça da padaria para contá-las. Faltava 1,20. Pediu o desconto.

Comeu seu doce enquanto dirigia. Era dessas que nunca esperarava chegar em casa.

E chegando chez elle não havia ninguém. 
Tudo seria o deserto, não fosse o cachorro mijando por todos os lados.
Se bebesse ou fumasse, poderia sentar-se no sofá. Assistiria a novela das 8 tomando uma cerveja, dormiria sem tomar banho e acordaria no dia seguinte com a consciência inabalável.
Mas não tinha tempo para. Não tinha motivação para.

Quando deparou com aquele vidro azul, transparente e se lembrou do presente-surpresa que havia recebido pela manhã.

E, sentou-se na beira da cama. Tirou o salto alto, a bolsa no chão, soltou os cabelos em cachoeira e abriu com quase devoção (diríamos) o frasco. Cheirou o perfume virando os olhinhos e pensou definitivamente: Isso tudo aí ainda há de valer a pena.

E se nos estivéssemos la, poderíamos ver uma aquela de 17 anos cheia de sonhos borbulhantes, que um dia ela havia esquecido entre papéis, poeira e certas rotinas.