Eu não tinha feito nenhum acordo com
o diabo, mas tinha acertado comigo mesma que não ia envelhecer. Não ficar feito
essa gente que anda por aí dançando sem saber se entregar, amando sem querer se
doar.
Eu seria jovem, decidi do alto dos meus 10 anos.
Comecei pela parte debaixo da árvore
no sítio da minha avó, e percorri o quintal seguindo toda
a extensão da cerca de aramo farpado. Na mão um pilão cheio de alho e sal, que
eu tinha roubado na cozinha.
O cachorro, que era cego de um olho
e coxo, me seguia capenguento.
-
Sai daqui Pluto, sai daqui.
Eu tinha medo desse fedido, que me
diziam, tinha muito problema na orelha. Era mansinho, mansinho, mas tinha esses
modos inusitados. Bastava passar a mão num pelo errado no ouvido esquerdo, para
ele avançar mesmo contra crianças. O que justificou o fato de eu ter passado
boa parte da minha infância, com medo das inconstâncias de um cachorro, que
mancava da pata traseira.
Percorrendo a cerca com meu pilão,
comendo o alho e sal amassado, me escondendo de um cachorro fugitivo de guerra.
(Eu criava na minha cabeça a imagem
dele correndo pelos campos de batalha, com lencinho cáqui no pescoço, carregando
uma espingarda nas costas. Seguindo a mesma lógica, ele tinha chegado no sítio da minha avó, em
Alvares Florence, vindo de carona em carrocerias de camionetes marrons.)
Meu avô, que sempre foi mais
pragmático, disse que ele foi chegando, se acostumando e fincou moradia, sem
perguntar nada a ninguém. Como um velho solteirão cansado da vida, ele chegou
hermético num fim de tarde, quando até as galinhas já tinham dormido, e eu
contava asneiras aos pés da minha Tia Nastácia.
O Pluto encostou na varanda de piso
vermelhão, entre a samambaia e a espada de São Jorge, atrás da cadeira de
corda de plástico e ali ficou. Até esse dia-agora, quando ele me perseguia
lentamente pelo quintal com suas três patas boas, seu ouvido com problemas e
seu olho cego.
Eu não entendia os cachorros.
Todavia, de certa maneira, minha
inabilidade para entendê-los era compressível. Até a chegada do Pluto, eu não
conhecia nem um outro cachorro além do Pitoco:
O Pitoco, um cachorrinho,
Muito esperto e muito ativo,
que morava nas histórias
do meu velho Tio Edinho.
O Pitoco,
que infeliz,
morria era picado de cobra
numa estrada bem longe dali.
Eu tinha medo de cobra, mas tinha
mais medo ainda dessas coisas que eu não entendia. Como o Pluto,
cachorro-velho-ermitão, fugido da guerra podia estar ali morrendo à olhos nus? Entregando
seus últimos dias a perseguir uma menina de 10 anos com pilão de alho na mão?
Como Pitoco, esse tontinho, podia morrer de picada de cobra tão longe dali e,
pelo visto, nem tinha morrido pelo velho Tio Edinho?
Eu tinha 10 anos, mas não queria
isso não, não queria ter fim igual a um cachorro de roça. Por isso, aos 10
anos, decidi não queria ficar velho não: não ter que escolher um lado da briga,
não ter que lutar pela minha vida ou ter que lamber minhas próprias feridas.
Nunca mais comi alho no pilão, o sítio
virou sombra-embolorada-passada, eu não sei mais por onde anda meu Tio Edinho.
O Pluto morreu escondido. Ele nunca me alcançou naquela cerca,
cujos limites de arame farpado até hoje eu desconheço.
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