O dia em que os dois gatinhos chegaram foi o
pior dia da minha vida. Aquelas bolinhas de pêlo macias e medrosas.
A petite
era magrinha, cheirosa e assustada como um esquilo no telhado. Tinha olhos
agudos, miado sofrido, um corpinho tenso de surras. Podíamos dizer que ela
havia apanhado. Mas não dissemos. Estávamos só preocupados em conquistá-la e em
fazê-la acreditar que este era seu novo lar.
O petit
tinha a barriguinha gorda, olhinhos gulosos, cheirava as pessoas e coisas e os
sapatos. Tinha bigodes curtos e um focinho assez pequeno. Naquela época eu nao
sabia muito bem nomear as coisas e, um pouco por negligência, seu nome ficou
Chico.
Como o avô. Meu avô.
Como o avô. Meu avô.
Nao se tratava muito de uma homenagem. De
fato, nem cheguei a conhecer esse avô. Tudo que sei é que ele era velho, bravo,
um tanto rabugente e um tanto quanto mais ainda mulato. Diziam era ele neto de
india. Tao brasileiro quanto o Macunaima.
Eu gostava so do som da palavra :
chi-co. Como o picolé que minha mãe gosta : chicabon. (Confesso que até cogitei chamar o gatinho Chicabon, mas me parecia um pouco longo demais. Inevitavelmente,
viraria apelido : Chica. E esse me soava moderno demais.)
E eu sou uma pessoa bem convencional.
Nasci e cresci na mesma cidade. Me casei e
hoje cuido dos meus dois gatinhos. Faço a mamãe. Dona-de-casa, econômica e
limpa. Um marido ótimo. Trabalha para o governo, joga bola às segundas-feiras. Não
tem religião, mas também nao tem vícios. Veste-se decentemente e sou eu quem
compra suas cuecas.
Não frequentamos bares, restaurantes ou shows
de música. Somos pessoas caseiras. De bem com os outros. De bem com. oras.
***
Os gatinhos estavam lá. Fugindo de mim.
Escondidos debaixo do sofá.
Meu marido ao meu lado, tinha os olhos mais
assustados que eles.
E eu, eu tremia de emoção ao ver minha
família margarina finalmente completa. Eu, meu marido, nossos gatos. O feijão
cozinhando devagar no fogo.
Voltei para cozinha buscando um copo d’agua.
Um refresco de limão de saquinho. Um copo com gelo. Meu corpo tremia. Eu tinha um orgasmo. Ou um ataque cardiaco.
Passando o gelo pela testa, molhei a nuca na
pia e como um cena vomitada de um filme eu estava de novo na antiga casa da
minha avó.
***
***
Meu avô viajava. Era caminhoneiro. Minha avó também
não estava lá. Seu corpo estava, mas ela não. Ela nunca estava no lugar onde
deveria estar. Desde aquela época ela estava sempre naquela lugar onde ninguém
poderia ajudá-la, onde ninguém poderia salvá-la. Limpava a casa como um robo, comia como as crianças, desdenhando
das gostosuras do prato, tomava banho como os gatinhos. Quase sem água. Ela
nunca suava.
Naquela tarde de poeira, ela corria contra
ela mesma. Competitiva, devia sempre se superar a si mesma em quesitos como
agilidade para limpar panelas, eficiência para enxugar pratos e muque para
lustrar panelas.
Nesse instante, ela varria do quintal as
folhas da mangueira. Os pequenos insetos e frutas caídas. Ao terminar o trabalho, entrou no quartinho
dos fundos para guardar a vassoura no armário de vassouras (sempre de ponta cabeça, ao
lado dos baldes e produtos de limpeza, e de maneira oposta à tábua de passar, e do
ferro, e da pilha de roupas que.
A pilha de roupas. Que, de repente, inundada de
sangue, pus e água. Os lençois brancos ,quase azuis. Seus lençois imaculados estavam embebidos em uma gosma nojenta que dava vida a uma pequena ninhada de
filhotinhos de gatos. 5 ou 6 bolinhas sem pêlo de olhinhos fechados. Esperando o
retorno da gata, que acabava de dar criar exatamente no quartinho dos fundos da
minha avó. Precisamente em cima de sua pilha de roupas brancas à passar. Suas
roupas brancas.
Com asco e um ódio crescente. Chorando palavras de desprezo,
engolindo lágrimas à seco. Um por um, ela jogou os gatinhos recém-nascidos no
bueiro.
A gata, como uma barata depois de receber uma
esguichada de veneno, ficou vagando pelo quintal. Miando. Pela rua, pelos
vizinhos. Semanas. Os gatinhos choraram durante três dias antes de morrerem. A gata
nunca mais apareceu por lá.
No dia seguinte minha avó lavou novamente
todos os lencois. Minha mãe diz que eles nunca estiveram tão limpos. Meu avô ainda
viajava.
***
Agachada no chão da cozinha, eu me enchia de
náuseas e meus olhos tombavam para trás como se fosse eu quem tivesse tomado uma
porrada de veneno na cara.
Como se tivesse cheirado lança perfume e uma
bateria de escola de samba passasse pelo meu fogão. Era a panela de pressao
prestes a explodir, depois de mais de uma hora no fogo. O barulho de apitos e
fumaça me guiou ate o botão para desligá-la.
Me levantei. Prendi os cabelos. Lavei o
rosto. Acendi de novo o fogo pra fritar o alho. Minha avó. A filha mais nova de
18 irmãos. O alho dava pulinhos na gordura quente. O azul do gás subia quase
gentilmente pelas laterais da panela.
***
O fogo. Mais ou menos como minha tia-avó morreu.
Maria helena, com apenas 18 anos. Num dia à
tarde, num desses de céus de poeira. Encheu uma bacia com álcool, entrou dentro
e ateou fogo a si mesma, no mesmo quintal varrido da minha avó. Maria Helena, no desespero ao ver o corpo pegando fogo, correu
até a rua gritando pelo nome da minha avózinha. Que atônita, nada pode fazer: nem sequer derramar uma lágrima.
Isso se passou alguns anos antes dos gatinhos, ou depois, nunca saberei.
Isso se passou alguns anos antes dos gatinhos, ou depois, nunca saberei.
***
Desliguei o fogão. Essa noite não teve comida. Os gatinhos se esconderam durante três dias até começarem a se habituar à nossa presença.
Desliguei o fogão. Essa noite não teve comida. Os gatinhos se esconderam durante três dias até começarem a se habituar à nossa presença.
Nunca mais pensei sobre essa historia. Mas de
tempos em tempos, acendia velas para a mãe que um dia eu seria, e para a mulher
que eu gostaria de ser.
Nenhum comentário:
Postar um comentário