3 de dez. de 2008

Sobre como tocar Mozart com uma guitarra

Caminhou a passos curtos e rápidos debaixo da chuva. A bolsa pesada, o jeans com a barra molhada, a blusa respingada de gotas d'água. Foi pensando na maquiagem, se estava com os olhos bem marcados, se ainda existia blush. Chiclete, sim, um chiclete.

Conseguiu enxergá-lo de longe, teve a impressão de que ele também a havia reconhecido, mas desviou o olhar. Melhor assim, definitivamente ficaria tímida se ele a fitasse por mais de 3 segundos. Atravessou a rua a passos quase corridos, um pé atrás do outro, pequenos passinhos desviando das poças de água e lama e todo tipo de sujeira inerente ao asfalto.
Ele gostava dos seus pés, ela pensava enquanto saltava sobre a sarjeta. Por alguns instantes sentiu-se sublime e quase superior. Ele deve estar sentado agora pensando nos meus pés nus, deitados à meia-luz, fumando um cigarro e todas aquelas coisas de liquidificador que Cazuza gostava, apesar dele não gostar de Cazuza.

Sentou-se apressada, olhando vagamente para os lados, nem ao menos um beijo. Nem um abraço. Sentou-se apavoradamente, pensou em acender um cigarro. Droga, não quero mais fumar. É, acaba com a pele e não tenho mais 15 anos.
Falou por uns 10 minutos compulsivamente sobre trabalho, trânsito, lembranças, projetos. Ele a beijou. E começou a falar sobre uma história que levava a outra história e um cigarro que ele acendia. É, fez a barba. E contava sobre seu dia enquanto fechava levemente os olhos ao soltar a fumaça do cigarro. Estava de bermudas, sentado displicentemente sobre a cadeira.
Falava sobre este livro novo que ela deveria ler e ela falava sobre a Rússia e aquele amigo-havia-dito-que. veja-bem-ele-conhecia-o-lugar.sim-já-havia-ido-umas-10-vezes-pra-Europa.não-não-era-meu-namorado. Era bom falar sobre outros caras, ele podia sentir ciúmes. Veja bem, conheço muita gente mais sofisticada que você. Só que acabava desistindo no final, imagina éramos só amigos.

Mais um beijo lento e macio, mãos no cabelo, olhar fixo enquanto as bocas se afastavam. Não, ela não estava acostumada a este tipo de cumplicidade. Mais um gole de cerveja. Foda-se, não precisava dele. Tinha seu emprego, seu carro, sua faculdade, cursos, livros, ginástica, opiniões, conceitos. Não tinha uma ideologia, nem valores morais. Mas que importa? Tinha medo, organização, disciplina, auto-controle, sua vida nunca saia do trilho, sua vida era previsível e silenciosa. Dirigia o carro respeitando limites de velocidade, ouvia som em um nível adequado à vizinhança, bebia somente dois copos de cerveja, dormia às 11 da noite. Lavava o rosto, passava hidratante, fazia as unhas semanalmente, não faltava ao trabalho, limpava sempre a casa e mantinha tudo em absoluta ordem.

Ele colocou o fone do celular em seu ouvido. Conhece essa música? Sim, adoro. rsrsrsrs
Mais algumas risadas cúmplices. Quero dizer, é do caralho.
Olhou para os lados. A chuva incessante, as calçadas entupidas de lixo, o mendigo atravessando a rua, o balcão engordurado, a velha gorda passando ao lado, a mocinha de calça com babados e o noivo de cabelos compridos tomando uma cerveja.
A pilha de bebidas vagabundas distribuídas numa prateleira, a TV ligada na novela, o garçom fumando um cigarro enquanto conversava com o taxista que tomava um café.

Cruzou as pernas e jogou os cabelos balançando a cabeça. Uma amiga fazia isso, ela achava o máximo e resolveu copiar. Sim, vou me alongar um pouco. É, faço yoga. Será que ele acharia interessante?Arriscou o movimento como se fosse a coisa mais natural do mundo, ele assistia o resultado dos jogos do Campeonato Brasileiro. Droga, vou ter que repetir isso até ele notar.

O telefone dele tocou. Ele fez uma cara feia e hesitou alguns minutos antes de atender. Ela demonstrou desinteresse. Começou a conversar com o rapaz-magrelo-cabeludo-sorriso-apático na sua frente. Sim, nesta hora havia alguém à mesa. (Ela esqueceu de me contar)

- To no bar.
- .......
- Te liguei pq vc me ligou de madrugada.
- .......
-Fala.
- ......
- Não, mas.....

Dois minutos depois o celular toca novamente.
Ele se levanta.
Vontade incontrolável de levantar e ir embora, olhar pra trás e procurá-lo até ele encontrar seus olhos e perceber que não estava divertido. É, bem dramático assim mesmo.
Vontade de ir embora. Merda de bar escroto, merda de amigos, merda de moleque, vagabunda, neurótica, cretino.
Ele voltou.
- Imagina, minha mãe perguntando onde eu estava.
Ela engoliu a seco um gole de uma cerveja quente e deu um trago no cigarro que ela havia pedido ao amigo loiro.
Fingir superioridade ou sutilmente ficar em silêncio? Optou por ouvir, absolutamente interessada, às histórias do amigo e rir de uma maneira que pudesse novamente jogar os cabelos para trás. Sentou na cadeira com as pernas cruzadas em x despretensiosamente. Ele passava a mão na sua nuca, oferecia um cigarro.
Cretino, tá com a consciência pesada.

Ela resolveu levantar-se e ir ao banheiro. Não quis se sentar no vaso, muito menos encostar na parede. Em que ponto estava....em que momento havia se tornado.....isso?essa?
Pelo menos não lavou as mãos.
Voltou à mesa e recebeu mais um beijo, olhou para a maneira que ele estava sentado e porra. Que pau esse moleque tem. Será que ela estava com ele só por sexo? Olhou seus olhos, as mãos, ajeitou seu cabelo para o lado enquanto ele falava sobre baixos.
Infelizmente não era só sexo, porque senão seria bem mais fácil, porque senão seria mais simples. Estúpida, mulheres nunca são simples.

Queria deitar no seu ombro, ouvi-lo falando baixinho sobre qualquer coisa e vê-lo acordar assustado por não tê-la ao lado.
Merda, e se ele nunca fosse capaz de oferecer isto? E se ela estivesse fantasiando um tipo de homem inatingível? E se ela estivesse sendo muito crítica? E se isso fosse só medo?E se a culpa fosse dela por não gostar de caras que a elogiassem? É, não havia nada pior do que caras que concordassem com tudo que ela dissesse ou a achasse muito sofisticada por ouvir jazz.
Sair correndo o quanto antes?

Foram embora à pé dividindo um guarda-chuva, ele a abraçando pelo pescoço e com todo corpo debaixo d'água. Era assim que ele gostava.
Na frente do portão, perguntou à ela se estava tudo bem. Ela olhou fixamente em seus olhos e disse que sim, claro. adorei.
Dois minutos depois ele ligou novamente. Quero aproveitar que estou bêbado, vamos combinar. Sempre dizer a verdade e tudo que nos incomodar. sempre, tá bom?
Ela sentou-se na beira da cama, deu um suspiro e achou que ao soltar o ar tudo que estava entalado na garganta fosse sair. Seus medos, fracassos, inseguranças, máscaras. Desligou submissamente com um tom de voz simpático, que estava tudo bem. até sorria!
Foi tomar banho, escovar os dentes, passar hidratante, organizar a bolsa e ler Jung antes de dormir, pensando se pintaria as unhas de carmin ou vinho no dia seguinte.

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