3 de dez. de 2009

O Senhor Puntila e uma epifania

Era uma chuva quente e abafada. Seus olhos marejados, os pés fixos no chão, as mãos enfiadas no meio das coxas.


- Meu Deus, como essas pessoas todas falavam.


Os vidros permaneciam embaçados, o barulho da água incessante, tudo parecia tão violento. Mas dentro desta sala, só podia ouvir todas aquelas vozes, quase que ofegantes. Quase pedia a eles:


- Mas respirem antes de falar.


***


E pensava nele, pensava em si mesma, seus planos, suas confissões, confusões, entregas, mentiras, tudo aquilo que formava a nuvem de poeira que cobria seus olhos e paralisava as mãos.

Sim, como uma tempestade de areia, um redemoinho de pó cinza, escuro e areia fina.


***

Voltou andando pela chuva, com o passo apressado, o coração na garganta, precisava correr, precisava saber, entender, comandar, organizar.


- Sem vulgarizar, por favor.


Mas podia ver, nos fracassos da outra, suas próprias sombras refletidas. Quase sentia-se bem, quase sentia-se completa.


***


Não conseguia prestar atenção no caminho, desviava dos buracos do asfalto alagado sem conseguir prestar atenção nos próprios pés. A sandália de cordas apertadas, os ossos magros vermelhos, as unhas sem cor.A bolsa pendurada em um só ombro.


Quase podia se lembrar daquela época que se andava a pé. Nas madrugadas, nas tardes frias, segurando as paredes, enxugando lágrimas, um fone de ouvido ligado na rádio, passos curtos, um eterno reencontro com si mesma.


Quase sorria. E a imagem de si mesma fugindo e, ao mesmo tempo, se encontrando, parecia tão real. Tão nítida. Clara como água fria escorrendo pelas pontas dos dedos. Os lábios quentes, os pés descalços.


Não, ele não acreditaria. Porque ele não entenderia. Afinal, será que tudo que havia restado era ela, assim, com os olhos baixos e alguma sofreguidão na voz?


Não, não. Não era ele, não era também a menina de olhos arregalados que a viu chegando molhada da chuva.

Não eram aquelas pessoas que não a olhavam nos olhos enquanto ela falava. Não eram os cargos, os nomes, as cobranças, as mentiras, todos os erros, todas as fugas. Não era aquele gosto do vazio na voz, nos olhos, a raiva incontida.


***


A chuva havia cessado. Só restava nas ruas o barulho, o pó, a mistura de concreto e poeira que invadia seus pés úmidos. O céu furta-cor que não denunciava o tempo dos próximos dias. Tudo permanecia permanentemente incerto.


Amor. Transbordando por todos seus poros.

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