13 de mar. de 2014

Nem todas as montanhas são mágicas


Oi, mãe.

Hoje eu sonhei com você, não, acho que foi ontem. Eu sonhei com muitos homens essa noite, sonhei que dirigia uma moto. Minha terapeuta disse que isso é um bom sinal.
Será que ela vai me liberar? Eu queria poder sair daqui. Eu queria poder voltar pra casa. Meu irmão tá bem? Tá forte? E minha avó?

Hoje tinha essa senhora aqui, ela só tinha que tirar sangue, mas ficou: Ai, meu Deus. Ai, meu Deus.

Tão batendo na porta.

Era minha comida. Tô com vontade de comer doce de goiaba em calda. Vontade de suco de goiaba com laranja, lembra mãe?
Mas a velha continuou gritando e eu fiquei pensando: cada um tem o que merece. Que Deus não deixe que eu vire uma velha assim, chorona igual criança pequena.

Quando eu era nova, mãe, eu tinha medo de escrever. Medo de tudo que eu escrevesse se realizasse. Então eu parei de escrever. A terapeuta disse que foi aí que as coisas começaram. A gente tá nesse momento de ficar revendo a infância, mas eu to cansada disso tudo. E, às vezes, quando ela entra, eu finjo que durmo.
Igual eu fazia na casa da minha avó quando eu era pequena. Será que ela se lembra?

Eu conheci um menino aqui. Ele parece comigo. A gente até deu uns beijinhos. Ele veio aqui do meu lado e disse que nunca gostou de mulher de cabelo comprido, porque a mãe dele raspa o cabelo. A mãe dele sai em balada gay, ela fala russo. Foi só isso que ele me disse e me beijou uns selinhos.

Eu sei, mãe, acho que você nunca me perdoou. Eu queria pedir desculpas. Eu queria pedir desculpas daquela outra vez que você chegou na minha casa e eu não deixei você entrar. Você não entrou, só meu pai entrou. Não foi isso? Você ficou brava, eu sei, você disse que me matava. Não foi você quem disse?

Sabe meu irmão, ele tá forte? A foto que eu tinha dele, eu acho que perdi. Se eu ficar velha eu vou ficar chorona igual um bebê?

Você me disse que eu era chorona, mãe. Quando eu peguei a faca, eu peguei a faca, mas eu não ia te matar, mãe. Eu não ia, era faca de manteiga, não era? Eu falei pra terapeuta, mas ela ficou quieta. Eu odeio quando ela fica quieta. Odeio a cara dela seca de ameixa. Ela é muito magra, mãe. Muito magra. Eu odeio ela.

Eu queria te ligar, mas a moça me disse que não tem telefone aqui. Eu procurei um dia à noite, eu vi as câmeras. Mas não tinha telefone mesmo. Não tinha ninguém e eu tava sozinha. Isso foi antes do meu amigo vir me dar selinho.
Depois disso, a moça disse que eu tinha inventado, mãe. Que aqui não tem homem nenhum, só tem mulher. Mas ela é louca. Eu gostava dela antes, mas agora sei que ela é louca.

Mãe, você pode vir me buscar? Eu disse pra moça que ia te escrever e você vinha me buscar. Igual quando eu tava na escola. Você demorava, mas vinha. Igual na escola, mãe. Eu vou chorar achando que você não vem, mas você vem depois me buscar.

Mas a moça não responde mais, mãe. Ela tá com sangue na cabeça, mãe. O sangue é roxo. O olho dela tá esbugalhado amarelo. Mas eu não fiz nada, não fiz nada. A faquinha de pão tá suja de sangue, mas eu não ia machucar ela, mãe. Vem me buscar, mãe. Daqui a pouco eles vão chegar, você precisar vir me buscar. Meu amigo tá lá embaixo já, eu vou te esperar.

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