- Viver é uma merda.
E foi essa a última coisa que vovô disse antes de atirar. Bang! Bang! Tiro
na boca, almoço de família.
A gente sempre foi meio dramático
na familia. Mas ninguém esperava que fosse o vovô que iria dar fim naquilo,
justo ele que era o mais calmo da nossa corja toda lá.
Ah, a nossa família.
Eu não desconfiava. Niguém desconfiava
eu acho. Desde que me conheço por gente meu avô tinha essa mania de olhar
janelas, TVs desligadas, ler livros em línguas
que não conhecia. Achávamos
ele sábio, culto, cultíssimo,
quase um velho ermitão naquela cadeira de balanço
de palha. Silencioso (ao contrário de
todos nós), de barba branca, os pés
das unhas encravadas, ele só andava
descalço e não gostava que lavassem muito
suas camisas.
Ele tinha esse ar meio barroco, meio de gente doida, essa
cara de maluco que só os inteligentes tem. E isso
confortava nosso dia a dia. Tudo vai bem, tudo vai bem, temos saúde, temos saúde, vovó
repetia limpando as mãos de sabão
em pó nas pernas.
Foi com um 38. E eu nunca tinha visto um. Ele era preto e,
parece, só tinha duas balas, não
podia ter erro. Sei que contando
assim parece que tinha sido premeditado, mas não
foi. Ia acontecer, dia ou outro
talvez, mas não tinha que ser bem naquele sábado,
disseram depois.
As mulheres tomavam pequenas doses de destilados com os
maridos. Minha avó trazia porquinhos assados,
arroz carreteiro, molhos variados, saladas de tomate e pepino, farofas, milho,
frangos assados. Fartura de carne. Todos tínhamos
à comemorar.
O novo emprego do Tio Paulo, a mudança de casa da Joana, o
Gutinho que tinha perdido os dois dentes da frente. Eu não
tinha nada pra comemorar, mas me lembro de me sentir tranquilo naquele lugar, a
casa do meu avô.
Eu tinha saído ver o
rio, fiquei olhando pela grade da varanda, aquela beleza de rio de barragem.
Cheio de água e vento, dourados,
piraparas. A casa ficava no alto, o rio lá
embaixo, para chegar tinha que descer uma escada que cheirava à carcaça de
peixe. Tinha uma árvore do lado direito e montes
de pedra do lado esquerdo, o vizinho mais próximo
nós nem conhecíamos
o nome e do lado esquerdo, fazíamos muro
com uma pedreira.
Quando o rio estava baixo, pegávamos
o barco pra ver a ilha de pedras que aparecia só
na seca, chamava ilha, ilha…a memória até
me falha…é difícil me lembrar desse lugar
como um todo: as janelas azuis da casa, o grande freezer, sem TV, sem sofá.
Só uma grande mesa e a varanda
de frente pro rio. A casa do meu avô.
Pensando hoje, ele nunca gostou muito de mim, quer dizer,
gostava menos do que dos outros netos. Eu tinha essa impressão,
mas não falávamos
muito sobre essas coisas. Tínhamos saúde, saúde é o que importa, dizia minha avó
da sua máquina de costura. Meu avô não
falava de nada, enquanto o resto da família
bebericava pequenas, pequeninas doses diárias
de destilados.
Eu era só o neto
mais novo, o que morava com os avós. Meu
pai, eu não conheci e minha santa mãezinha,
morreu no parto no dia do meu nascimento.
Tínhamos poucas fotos da moça
pequena com pernas fortes (dizia minha avó),
os olhos castanhos, ondulados. Uma beleza banal como quase todas da nossa família.
Eu só tinha essa foto da minha mãe
grávida. Sentada na cadeira de
palha do meu avô. Mas falávamos
pouco sobre isso. Sei, porém, que
ela teve o parto em casa, nessa casa do rio. No momento do meu nascimento, meu
avô estava lá. Foi ele quem cuidou das
burocracias do luto e para que suas cinzas fossem jogadas no rio.
Meu avô, o ermitão.
Pois foi nesse sábado, imagino
que cansado de mer ver cheio de vida olhando o rio, aquele rio tão
bonito que carregava a morte de minha mãe.
Foi nesse dia que ele quem sacou o revólver
e veio em minha direção: Viver é uma merda! Bang!
Bang! E meteu dois tiros que ele
tinha guardado no peito todos esses anos
bem no meio da minha boca.
Um comentário:
Legal amor
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