3 de abr. de 2014

A ilha das capivaras


- Viver é uma merda.

E foi essa a última coisa que vovô disse antes de atirar. Bang! Bang! Tiro na boca, almoço de família.

A gente sempre foi meio dramático na familia. Mas ninguém esperava que fosse o vovô que iria dar fim naquilo, justo ele que era o mais calmo da nossa corja toda lá. Ah, a nossa família.

Eu não desconfiava. Niguém desconfiava eu acho. Desde que me conheço por gente meu avô tinha essa mania de olhar janelas, TVs desligadas, ler livros em línguas que não conhecia. Achávamos ele sábio, culto, cultíssimo, quase um velho ermitão naquela cadeira de balanço de palha. Silencioso (ao contrário de todos nós), de barba branca, os pés das unhas encravadas, ele só andava descalço e não gostava que lavassem muito suas camisas.

Ele tinha esse ar meio barroco, meio de gente doida, essa cara de maluco que só os inteligentes tem. E isso confortava nosso dia a dia. Tudo vai bem, tudo vai bem, temos saúde, temos saúde, vovó repetia limpando as mãos de sabão em pó nas pernas.

Foi com um 38. E eu nunca tinha visto um. Ele era preto e, parece, só tinha duas balas, não podia ter erro.  Sei que contando assim parece que tinha sido premeditado, mas não foi. Ia acontecer, dia ou outro  talvez, mas não tinha que ser bem naquele sábado, disseram depois.

As mulheres tomavam pequenas doses de destilados com os maridos. Minha avó trazia porquinhos assados, arroz carreteiro, molhos variados, saladas de tomate e pepino, farofas, milho, frangos assados. Fartura de carne. Todos tínhamos à comemorar.

O novo emprego do Tio Paulo, a mudança de casa da Joana, o Gutinho que tinha perdido os dois dentes da frente. Eu não tinha nada pra comemorar, mas me lembro de me sentir tranquilo naquele lugar, a casa do meu avô.

Eu tinha saído ver o rio, fiquei olhando pela grade da varanda, aquela beleza de rio de barragem. Cheio de água e vento, dourados, piraparas. A casa ficava no alto, o rio lá embaixo, para chegar tinha que descer uma escada que cheirava à carcaça de peixe. Tinha uma árvore do lado direito e montes de pedra do lado esquerdo, o vizinho mais próximo nós nem conhecíamos o nome e do lado esquerdo, fazíamos muro com uma pedreira.

Quando o rio estava baixo, pegávamos o barco pra ver a ilha de pedras que aparecia só na seca, chamava ilha, ilha…a memória até me falha…é difícil me lembrar desse lugar como um todo: as janelas azuis da casa, o grande freezer, sem TV, sem sofá. Só uma grande mesa e a varanda de frente pro rio. A casa do meu avô.

Pensando hoje, ele nunca gostou muito de mim, quer dizer, gostava menos do que dos outros netos. Eu tinha essa impressão, mas não falávamos muito sobre essas coisas. Tínhamos saúde, saúde é o que importa, dizia minha avó da sua máquina de costura. Meu avô não falava de nada, enquanto o resto da família bebericava pequenas, pequeninas doses diárias de destilados.

Eu era só o neto mais novo, o que morava com os avós. Meu pai, eu não conheci e minha santa mãezinha, morreu no parto no dia do meu nascimento.  Tínhamos poucas fotos da moça pequena com pernas fortes (dizia minha avó), os olhos castanhos, ondulados. Uma beleza banal como quase todas da nossa família.

Eu só tinha essa foto da minha mãe grávida. Sentada na cadeira de palha do meu avô. Mas falávamos pouco sobre isso.  Sei, porém, que ela teve o parto em casa, nessa casa do rio. No momento do meu nascimento, meu avô estava lá. Foi ele quem cuidou das burocracias do luto e para que suas cinzas fossem jogadas no rio.

Meu avô, o ermitão.

Pois foi nesse sábado, imagino que cansado de mer ver cheio de vida olhando o rio, aquele rio tão bonito que carregava a morte de minha mãe.

Foi nesse dia que ele quem sacou o revólver e veio em minha direção: Viver é uma merda! Bang! Bang! E meteu dois tiros que ele tinha guardado no peito todos esses anos  bem no meio da minha boca.

Um comentário:

Anônimo disse...

Legal amor